Ao pensarmos nos títulos disponíveis, a atualidade pode ser considerada uma das melhores épocas para o consumo de mangás no Brasil. O nosso mercado tem abraçado cada vez mais obras, das mais diversas, e apostado constantemente em vários nichos diferentes, desde obras mais filosóficas, famosas no mercado francês, até obras que abraçam o conteúdo LGBTQA+ nesta vasta quantidade, o que eram questões impensáveis há alguns anos.
Ainda não estamos perfeitos no quesito bibliodiversidade. A falta de shoujos e joseis, além de uma maior consistência em obras BL/GL, são exemplos disso. E um outro ponto que também está em falta no nosso vasto mercado são livros teóricos sobre mangás. Seja Mangasia ou Mangá: Como o Japão reinventou os quadrinhos, do Paul Gravett; o Manifesto Moe, de Patrick Galbraith; ou A Era de Ouro dos Mangás, de Hiroki Goto, a necessidade de uma leitura mais teórica sobre a arte que tanto amamos se faz necessária. E, justamente entrando neste ponto, está Mil Anos de Mangá, um livro de Brigitte Koyama-Richard, lançado recentemente pela editora Estação Liberdade.
Antes de falar sobre o livro, vale um pequeno resumo sobre a autora, visto que, por ser um livro recheado de pesquisa, entendê-la auxilia na compreensão dos aspectos que são vistos no passar das páginas. Brigitte é doutora em Literatura Comparada e dá aulas de História da Arte e Literatura Comparada na Universidade Musashi em Tóquio. Este não é o único livro da autora sobre a cultura pop japonesa, já tendo escrito também um sobre animes, intitulado L’Animation japonaise: du rouleau peint aux Pokémon (A Animação Japonesa: Dos Rolos pintados até Pokémon, em tradução livre).
Passando agora para o Mil Anos de Mangá, o livro busca traçar toda a origem do mangá. Suas inspirações e transformações a partir dos séculos, envolvidos tanto pela alteração cultural quanto pela política do Japão no passar dos anos. Pensando nisso, ele é dividido em algumas grandes partes:
- Das Primeiras Caricaturas aos primórdios das histórias em quadrinhos: A Magia dos rolos pintados;
- O nascimento das estampas japonesas: A idade de ouro da Caricatura;
- A Abertura do Japão ao Ocidente: Na aurora de uma nova caricatura;
- O desenvolvimento das histórias em quadrinhos até a Segunda Guerra Mundial;
- Osamu Tezuka: O Deus do mangá moderno;
- Os mangás de hoje;
- Retratos de artistas do Mangá;
- Dos Mangás às Outras formas artísticas.
Com tais temáticas, a autora aborda o panorama geral da arte japonesa voltada às histórias, começando com os rolos pintados do século XII chamados de emakimono, passando para a criação da nomenclatura por Katsushika Hokusai, para a transformação e associação com questões políticas, jornalísticas e caricaturas, e sendo novamente ressignificada com Osamu Tezuka, chegando até os dias de hoje.
Para aqueles que se perguntam o quão atualizado é esse livro, podem ficar tranquilos. Dentre os mangás contemporâneos citados, temos Kimetsu no Yaiba e Spy x Family, sendo que este último, inclusive, conta com uma foto do volume 7.
Falando das ilustrações, o livro é ricamente ilustrado com mais de 450 imagens detalhadas e com bastantes informações sobre pontos que estão sendo retratados no texto, porém, sua riqueza é uma faca de dois gumes, visto que ao trabalhar com muitas imagens no texto, algumas só serão vistas páginas à frente de sua citação, o que acaba quebrando a imersão na leitura para ir atrás da referência, ou manter a leitura incompleta até a virada de página.
Outro ponto que chama a atenção é referente a organização das informações, com o glossário no final. Apesar de bastante completo e trazer diversas informações necessárias para a leitura, o livro é organizado de forma a, caso a palavra esteja no glossário, aparece no texto com um asterisco. Então, caso não conheça o termo, a leitura deve ser pausada para que você o confira. Pontos pormenores, mas que vale a citação.
O livro também aborda como o mangá se popularizou de forma a se tornar auxílio de material didático, citando tanto adaptações feitas de grandes peças teatrais e livros conhecidos, quanto conceitos práticos publicados em forma de mangá, tal qual a Novatec publica no Brasil.
Mais à frente, a obra aborda sobre a contemporaneidade do mangá, dedicando mais tempo a cinco autores específicos: Jiro Taniguchi (O Homem que Passeia), Shigeru Mizuki (Nonnonba), Riyoko Ikeda (Rosa de Versalhes), Leiji Matsumoto (Patrulha Estelar Yamato) e Hinako Sugiura, esta sendo a única mangaka listada que nunca fui publicada no Brasil. Nesses textos, a autora sumariza pontos que são necessários para a compreensão tanto do artista quanto dos conceitos que ele irá trabalhar nos seus mangás. Além disso, conta também com entrevistas de Leiji Matsumoto com Miyako Maki, Jiro Taniguchi, Isao Takahata, Fumiyo Kono e Kotobuki Shiriagari, complementando informações sobre suas carreiras.
Ricamente ilustrado e com mais de 100 referências bibliográficas, sendo 71 destas japonesas e o restante referente a pesquisas feitas no ocidente, Mil Anos de Mangá é uma excelente viagem, um túnel do tempo apresentando as possíveis origens da história em quadrinhos e suas transformações, sempre citando diversas obras necessárias. Seu ponto mais fraco se dá justamente pelo recorte feito, pois, ao buscar abordar uma história tão vasta em poucas páginas, diversos pontos não foram devidamente aprofundados, sendo necessárias pesquisas complementares.
A edição física do livro está bem-feita, com um papel excelente e, em minha leitura, não encontrei erros de ortografia. É um trabalho fenomenal e um ótimo ponto de partida para quem quiser conhecer mais sobre a história dos mangás, embora para quem já conheça o assunto possa ter poucas questões novas, enquanto outras já devem ter sido estudadas por outras fontes.