Recentemente, algumas cenas da edição nacional de Spy x Family acabaram chamando a atenção, devido a sua alta qualidade de tradução, mantendo todas as ideias e trocadilhos da Anya coerentes com o que está sendo dito. E, por trás de um trabalho desse, existe um profissional. E é justamente ela que conseguimos entrevistar hoje!
Mangateria: Antes de tudo, gostaria de uma introdução e uma breve apresentação sua, sobre você e há quanto tempo trabalha com tradução
Luciane: Olá a todos! Muito obrigada pelo convite. Eu sou a Luciane Yasawa, trabalho com revisão e edição de texto e, desde 2016, com a tradução de mangás também. Muito prazer!
Mangateria: Quais obras está traduzindo atualmente?
Luciane: Atualmente, estou encarregada de Noragami, Spy x Family, Hanako-kun e os mistérios do Colégio Kamome e Komi não consegue se comunicar. E Ultramarine Magmell, embora ele esteja em hiato.
Mangateria: Quando decidiu entrar para a área de tradução?
Luciane: Não sei dizer ao certo, porque, pensando bem, a curiosidade sempre existiu, só que bem discretamente. Acho que a primeira vez que cogitei “conscientemente” a opção foi em 2014, enquanto traduzia o currículo do intercâmbio que havia feito no mesmo ano para pedir aproveitamento de créditos na faculdade, hahaha! Foi aí que o interesse ficou claro dentro de mim; tanto que meu TCC acabou sendo sobre tradução também.¹
1 – O TCC mencionado se chama “Entre Sonhos e Versões: reflexões sobre o traduzir na língua japonesa.” feito em 2015 na conclusão da Graduação em Editoração da USP.
Mangateria: Como entrou nesse mercado de tradução e qual foi seu primeiro trabalho?
Luciane: Bom, o meu caso foi um pouco peculiar. Eu trabalhava como assistente editorial para o selo de mangás da Panini, e uma das coisas que fazia lá era conferir as traduções. Aí, um belo dia, minha chefe perguntou se eu tinha interesse em tentar traduzir e, como já estava mesmo cogitando a ideia, resolvi aceitar. Meu primeiro trabalho foi The Wedding Eve — A Véspera do Casamento & outras histórias.
Mangateria: Como é o contato com o material original?
Luciane: Em geral, a editora sugere títulos e eu dou uma olhadinha por cima no material antes de decidir se pego ou não. Quando aceito, procuro me informar um pouco mais a respeito, mas sempre evitando as traduções de fãs etc., para poder encarar a obra com a “mente fresca”, digamos assim. E, se tiver tempo, leio alguns volumes em japonês de antemão. De resto, é basicamente me debruçar sobre cada volume e ir dançando conforme a música. Infelizmente, por falta de tempo, ando meio por fora do mundo dos mangás, então a maioria dos títulos que me são sugeridos eu só conheço de nome…
Mangateria: Já chegou a conhecer ou conversar com algum(a) autor(a) que traduziu?
Luciane: Infelizmente não. Seria um sonho! Nem sei quantas vezes já me peguei pensando em como seria ótimo poder conferir as intenções dos autores diretamente com eles, hahaha!
Mangateria: Você tem aquela tradução que se destaca no seu coração? Não precisa ser necessariamente por uma questão técnica, pode ser por memória afetiva também
Luciane: The Wedding Eve, por ser a primeira. Noragami, por ser a primeira série. Em especial, o volume 1, porque foi a minha primeira vez tendo que fazer escolhas importantes em relação aos termos, pesquisar a fundo sobre o universo (a minha sorte foi que eu já era familiarizada com aspectos da mitologia japonesa e obras como o Kojiki, por exemplo) e… lidar com a expectativa dos fãs. Lembro-me até hoje do quão tensa fiquei logo que ele foi publicado e do alívio que senti quando minha chefe disse, olhando nos meus olhos, que não tinha visto ninguém reclamar da tradução. Provavelmente teve gente que odiou, é claro, mas foi muito reconfortante ouvir essas palavras vindas da editora, porque sei bem o quão exigentes e intimidadores os fandoms podem ser. Fora esses, também tenho um xodó por Spy x Family, porque é um mangá muito lindinho e sempre dou boas risadas com ele. Ah, e Ajin. Eu adorava traduzir Ajin! Até aquela página de créditos infernal no fim dos volumes, hahaha!
Mangateria: Além de japonês, você fala mais algum idioma? E como foi o processo de aprender uma nova língua?
Luciane: Também falo inglês e, no momento, estou estudando mandarim. Por ser nikkei², tenho contato com o japonês desde que me conheço por gente, mas comecei a estudar a língua para valer quando tinha lá pelos meus sete ou oito anos. Como aprendi a ler e escrever praticamente em simultâneo com o português, o processo foi mais ou menos parecido, eu acho. Ah, mas posso falar uma coisinha sobre o mandarim: até encontrar a “lógica” por trás da leitura dos ideogramas em relação à leitura japonesa (entre aspas porque não sei se é algo que só faz sentido para mim), é tudo incrivelmente confuso quando você sabe kanji, hahaha!
² – Descendente de imigrantes japoneses
Mangateria: Já teve algum termo que você batizou a versão brasileira e se sentiu orgulhosa?
Luciane: Não. Em geral, o que eu mais costumo sentir depois de batizar algum termo é arrependimento…
Mangateria: Uma tradução sua em Spy x Family ficou viral no twitter. A transformação de “O Conhecimento é Poder” por “O cão é sedento de poder”. Como surgiu essa ideia para traduzir assim?
Luciane: Essa frase foi um típico caso daquelas que me dão dor de cabeça e pesadelos por uns dias para, no fim, acabarem indo para a editora com uma nota choramingando que não consegui pensar em nada melhor e suplicando ajuda. Mas me deixa explicar, por favor!
No original, o Yuri fala “chi wa chikara”, “saber é poder”. E a Anya entende “chiwawa jikara”, que seria algo como “poder do chihuahua”. Haveria diversas outras adaptações possíveis (e infinitamente melhores) se não tivesse um chihuahua bombado desenhado no quadro, acompanhando o balão. Aí, por falta de opção, comecei a dar umas voltas enormes em torno do chihuahua, e acho que a linha de raciocínio final foi mais ou menos assim:
saber = conhecimento.
chihuahua = cachorro = cão.
“Conhecimento é poder, cão-nhecimento e poder, cão… e cimento? Mas e o poder? Cão… é… sedento? Cimento, sedento… de poder? Conhecimento? Cão é sedento? Hm. Até que soa parecido. E é claro que a Anya conheceria a palavra ‘sedento’ e eu não estou forçando nem um pouco a barra, né? Imagina! (risos nervosos)”
Então só ficou assim pela sonoridade mesmo. E até que parece, vai?
Mangateria: A tradução é uma parte fundamental da leitura, mas não ganha o devido reconhecimento. O que acha que falta para que os tradutores sejam mais valorizados no mercado pelos fãs de quadrinhos?
Luciane: Confesso que não tenho uma boa resposta para essa pergunta, infelizmente. É claro que a profissão merece todo o respeito e reconhecimento do mundo — imaginem só quanta dificuldade teríamos no dia a dia e quantas obras fantásticas nós deixaríamos de conhecer, não fosse pelos tradutores! Mas, assim como acontece com a edição de texto, penso que o trabalho do tradutor precise de certa “invisibilidade” no sentido de, durante a experiência, o leitor não perceber que ele está lá. No caso da literatura, por exemplo, quanto mais naturais as frases soarem, quanto mais parecerem algo “em português” e não “traduzido para o português”, melhor. E acho que só dá para realmente ter uma noção do quão difícil é chegar perto disso sem comprometer o estilo do autor nem desrespeitar as diretrizes das editoras quando se põe a mão na massa. Então gosto de pensar que, se as pessoas não se lembram dos tradutores e da língua original ao lerem a edição brasileira de uma obra, é porque eles estão fazendo um bom trabalho. Mas por favor, valorizem os tradutores, fãs de quadrinhos! Dá um trabalhão! Olha o caso do chihuahua!!
Mangateria: Mario Luiz Barroso já brincou algumas vezes falando que traduzir é “inventar com o trabalho dos outros”. Quais são as maiores dificuldades para você em manter a voz do autor ao traduzir?
Luciane: A meu ver, quando falamos na tradução de histórias em quadrinhos, a dificuldade maior não está tanto em manter a voz do autor em si, mas sim o “jeitão” de cada personagem. No caso do japonês, que além de ser uma língua bastante diferente do português, conta com vários graus de formalidade, por exemplo, pode ser complicado encontrar formas de adaptar as peculiaridades da fala de cada um sem sair do padrão das editoras. Dito isso, minhas maiores dificuldades são com três coisas que, curiosa e ironicamente, eu adoro: dialetos, piadas e jogos de palavras, como é o caso dos trocadilhos. Quem me dera ter o dom do humor e da poesia…
Mangateria: Tem alguma tradução ou batismo de um termo feito por outra pessoa que você admira? Como a tradução de uma sigla ou um acrônimo, por exemplo?
Luciane: Há muitas! Mas, falando especificamente de mangás, tem uma adaptação em particular que, por mais trivial que possa parecer, ficou na minha cabeça desde que a li pela primeira vez quando criança, lá na época dos “meio-tankos”. Em um volume de Yu Yu Hakusho, acho que no início do arco do Sensui, os meninos enfrentaram um antagonista que proibia o uso de certas palavras ou algo assim. A palavra em questão era “quente” e, se eles a dissessem, acontecia alguma coisa ruim que já não lembro o que era. Eis que, em dado momento, o Kuwabara (acho que foi ele) solta um “quem te viu e quem te vê”. Eu acho essa adaptação tão genial! Se não me engano, a palavra em japonês também era “quente”, e o personagem falava de um jeito que, sem querer, juntava as três sílabas que a compõem.³ Ou seja, o tradutor conseguiu usar o termo original, manter o acidente de “formar a palavra proibida a partir de duas palavras diferentes” e encontrar um jeito engraçado e natural de adaptar que, além de tudo, respeitava o tom debochado do personagem e do mangá. Não é um “batismo” por assim dizer, mas achei uma sacada simplesmente perfeita.
³ – O texto referido acontece no volume 13 da edição tanko da JBC. Tradução de Luiz Kobayashi. No original, a palavra também era quente: atsui. E Kuwabara fala “Ahh, coloca um pouco de gelo”: “Aa, tsuide ni koori mo irete kure”
Mangateria: Finalizando, quais dicas você dá para quem quer começar na área? Onde é possível procurar emprego e/ou montar um portfólio, na sua opinião
Luciane: Como eu caí meio que de paraquedas na área, infelizmente não tenho condições de oferecer nenhuma dica além daquelas que todo mundo já dá: antes de mais nada, estude bem o português (isso pode parecer bobo, mas é muito importante!), consiga certificados de proficiência na língua-fonte com que pretende trabalhar, leia e se inteire da profissão, procure grupos de tradutores nas redes sociais. Fazer cursos de tradução também pode ser uma boa ideia para, além de se especializar, montar um portfólio inicial e conseguir contatos; e você pode ainda tentar a sorte naqueles sites que oferecem serviços de tradução para várias línguas. Se a intenção for procurar algo na área literária, acho que o melhor a fazer talvez seja oferecer seus serviços diretamente para as editoras mesmo. Talvez pedir para fazer um teste, por exemplo. De qualquer forma, se alguém aí estiver pensando em se aventurar pela área, espero que dê tudo certo! Força!!